A adaptação em live-action de Death Note (finalmente) chegou ao serviço de streaming da Netflix. A produção original foi dirigida por Adam Wingard (V/H/S e O Hóspede) e inspirada na icônica série de mangás criada por Tsugumi Ohba e Takeshi Obata.
Depois de muita especulação e tensão, podemos conferir o longa e colocar os pingos nos is. Afinal, a adaptação ocidental de Death Note pela Netflix é ou não uma total porcaria? Vamos descobrir!
Crítica sem spoilers!
Enredo MUITO diferente do original
Wingard alertou e os fãs de Death Note devem estar preparados: a história do filme está BASTANTE diferente da original. Por isso, se você não quiser ficar de mal-humor após os 100 minutos do longa, então é melhor encarar o Death Note da Netflix como uma releitura do mangá e não como uma adaptação.
Para começar, a trama se passa em Seattle, nos EUA, e mostra um Light Turner devastado pela perda de sua mãe num trágico acidente. Assim, a família do jovem, que no anime consistia em pai (Soichiro Yagami), mãe (Sachiko Yagami) e irmã (Sayu Yagami), se resume apenas ao pai (James Turner, na versão ocidental).
Mas esta apenas é a ponta do iceberg de diferenças entre o filme da Netflix e a história original de Ohba e Obata. Além das características físicas dos personagens, o que realmente choca o fã de Death Note é a total deturpação da personalidade dos mesmos.
O comportamento de Ryuk, Light e Mia (Misa) no filme chega a ser oposta ao que foi apresentado na série original, seja nos diálogos ou nas atitudes. Na realidade, arriscamos a afirmar que dá para contar nos dedos da mão as características que nos remetem a trama vista no mangá/anime.
Light Turner definitivamente não é o Yagami
Nat Wolff se mostrou uma decepção ao encarnar Light. Não que a culpa seja unicamente do ator, mas definitivamente não dá para engolir a nova personalidade que tentaram imprimir no personagem.
Uma das principais particularidades de Light Yagami é a sua inabalável confiança, seu egocentrismo, sua aparente tranquilidade perante os momentos de tensão e, principalmente, sua determinação. Na história original, Kira nunca põe em dúvida o seu objetivo de se tornar o "deus do novo mundo", seguindo impassível com o seu plano.
Light Turner é MUITO medroso e emocionalmente instável. Nós enxergamos muito mais da frieza e do egocentrismo típico do Kira na personagem de Mia Sutton do que no dono do Death Note. Aliás, temos muito o que falar sobre a Mia, mas ainda não é o momento...
O primeiro contato de Light com o shinigami Ryuk se resume em duas palavras: vergonha alheia. Muita gente viu isso nos trailers, portanto não é spoiler, ok? O rapaz começa a gritar desesperadamente como uma criança de 5 anos que deixou o sorvete cair no chão!
Ah, mas o pior ainda está por vir, meus amigos... Light Turner é APAIXONADO por Mia Sutton! Para quem é fã de Death Note e acompanhou seja o anime ou o mangá sabe muito bem que Light nunca nutriu sentimentos afetivos por nenhum ser humano, muito menos por Misa Amane.
Diferente da história original, a ideia de se tornar o "deus do novo mundo" também é superficialmente mencionada. Light diz que o mundo precisa de um "deus", mas nunca afirma ser ele a ocupar este cargo. Isso mostra como falta uma boa dose de egocentrismo no personagem do filme para se equiparar com o brilhante Yagami dos mangás.
Eles podem ter (quase) o mesmo nome, mas definitivamente Light Turner e Light Yagami NÃO SÃO a mesma pessoa. O personagem do filme ocidental pertence a uma realidade alternativa muito insossa e piegas.
Uma nova e perigosa motivação
Uma das piores mudanças que o filme traz é a motivação de Light para começar a matar usando o Death Note. Ao contrário da história original, Kira não se agarra ao desejo por justiça para agir, mas sim ao de vingança. Sinceramente, mudar isso é o mesmo que tirar toda a essência do mangá!
O bullying nas escolas é um tema que está fortemente envolvido com a motivação do jovem, o que pode ser interpretado de forma bem negativa, se formos analisar o contexto do filme mais afundo.
O longa mostra um estudante que sofre bullying recorrendo ao Death Note para se livrar dos seus agressores. Em outras palavras, mata aqueles que lhe perseguem. Num país como os Estados Unidos, com um histórico traumatizante de violência e mortes nas escolas, principalmente por motivos de vingança, usar isso como justificativa para as ações de Light é um tanto irresponsável.
"Não confie no Ryuk"
A "motivação" de Ryuk também é outra no filme. No mangá o shinigami foi ao mundo dos humanos simplesmente porque estava entediado e queria se entreter. Desde o princípio o deus da morte deixou claro que não ia influenciar em absolutamente nada, limitando-se apenas a observar as decisões de Raito.
Mesmo se intrometendo bastante nas decisões do Kira, a presença de Ryuk no filme não é marcante. Mas não sejamos injustos, a risada de Willem Dafoe (que emprestou a voz para dar vida ao Shinigami) é muito parecida com a original.
Em nenhum momento é citada a existência de outros deuses da morte ou do Reino dos Shinigami. Ryuk se apresenta como um ser único e dotado da responsabilidade de manter o "circo pegando fogo" entre os humanos.
Era mesmo suposto Mia Sutton ser Misa Amane?!
A personagem de Mia Sutton (Misa Amane) ganhou um destaque extra na trama do filme. Como já falamos, a sua personalidade é absolutamente oposta daquela vista nos mangás/animes... O que não agrada em nada os fãs da franquia, como era de se esperar.
De popstar a líder de torcida do Ensino Médio (exatamente, ela é uma cheerleader no filme!). Mia Sutton é a personificação da típica estudante popular do high school americano, com aquele característico ar blasé das cool kids das séries adolescentes hollywoodianas.
Esqueça a inocência e efusividade de Misa Amane do anime, pois Mia não tem nada de inocente. A submissão insana da jovem por seu querido Light também passa longe no filme. Aliás, em determinada parte do longa fica a impressão de que o diretor trocou as personalidades de Light e Misa do anime e implantou nas personagens de Nat Wolff e Margaret Qualley.
Mia é controladora e não lembra em nada a submissa Misa Amane. Por outro lado, o apaixonado Light se vê nas mãos da sua namorada em alguns momentos. Para este Kira o seu propósito de ser o "deus do novo mundo" pode ser facilmente abdicado em nome do "amor". Mas Mia não pensa do mesmo jeito...
Cadê a incrível inteligência dos personagens?
Light e L se encontram algumas vezes durante o filme e o que vemos é um show de interpretações exageradas, esquisitas e diálogos nada inteligentes. As conversas entre os dois personagens representa um dos highlights da série, pois tanto Light como L são extremamente espertos.
O jogo de gato e rato no Death Note da Netflix fica apenas na ação. Vemos literalmente L correndo e pulando obstáculos para capturar o Kira. Eu sei que é difícil, para não dizer impossível, transferir o rico conteúdo de todos os episódios da série para 1 hora e 40 minutos de longa, mas convenhamos que o melhor do entrave entre L e Kira não está na ação, mas sim na batalha intelectual firmada entre ambos.
Ok, as deduções tiradas por L fizeram sentido no filme, mas poderiam ser muito mais desenvolvidas (e inteligentes). Toda a lógica do detetive para desconfiar de Light pareceu bastante forçada.
Light também não ficou bem na fita. Aliás, o "super-dotado" Light Yagami dos mangás é um rapaz totalmente comum no filme. Sim, podemos dizer que Light Turner é inteligente e um "bom aluno", mas passa longe de ser um gênio como é visto no mangá/anime.
Novas regras no Death Note
O diretor do filme havia declarado que algumas regras seriam acrescentadas ao Death Note, com o propósito de justificar o enredo... E infelizmente ficou tudo MUITO RUIM!
A nova regra é a número 95: "Qualquer um pode escrever nomes no caderno, mas só o portador pode possuí-lo por mais de 7 dias". Ou seja, caso Light fique uma semana sem usar o Death Note, o artefato deixa de ser sua propriedade.
Outras mudanças muito toscas estão no filme, como o fato de APENAS o dono do Caderno da Morte ser capaz de ver o shinigami. Mia Sutton não é capaz de enxergar, falar ou ouvir Ryuk, mesmo após tocar no Death Note.
Também não há qualquer referência aos poderosos Olhos de Shinigami ou explicações sobre a natureza dos deuses da morte. Mas levando em consideração a confusão que foi feita na essência da história, acaba por ser previsível a falta dessas informações no enredo do longa.
Drama adolescente regado com vísceras
Os produtores do filme não pouparam no orçamento do sangue fictício. Cada uma das mortes mostradas são visualmente fortes e grotescas, desaconselhadas para menores de 16 anos (pelo menos é o que diz a classificação etária).
No entanto, ao ignorar certas particularidades essenciais da série e priorizar a brutalidade das mortes, o filme só afirma a sua posição como drama adolescente com resquícios de pseudo-terror para impressionar os espectadores mais sanguinários.
Mesma trilha sonora de Top Gun?
Que músicas são essas, meus amigos? A determinado momento parecia que estávamos assistindo a uma novela das seis (leia-se Malhação) misturada com Top Gun - Ases Indomáveis!
Quem iria imaginar que assistiríamos ao ápice do filme, um dos momentos mais dramáticos, ao som de Power of Love, interpretado por Jennifer Rush, e I Don't Wanna Live Without Your Love, dos Chicago?
Bem, este é só um exemplo da "excelente" soundtrack oitentista que dá tom ao filme. Você consegue imaginar Light e essa trilha sonora no mesmo conjunto? Pois é, também foi difícil para nós.
L é o melhor do Death Note da Netflix?
Particularmente, nós achamos que não há nada de mau em ver um L negro, ao contrário de muitas críticas por aí. Aliás, não é tão preocupante ver atores esteticamente diferentes da descrição física apresentada no cânone. Afinal de contas, consiste numa adaptação ocidental e podemos tolerar isso, até certo ponto. Mas, o que não pode ser mesmo perdoado é a total mudança na personalidade dos personagens.
O L, por exemplo, interpretado por Keith Stanfield, foi um dos poucos a manter a natureza da sua identidade... Pelo menos parte dela.
L rodeado por doces, a sua postura peculiar ao se sentar e o modo estranho de segurar os objetos, tudo isso aparece no filme. No entanto, há um gigantesco MAS que põe tudo a perder: a impaciência e a instabilidade emocional do personagem.
Para quem ainda não conhece a história original, L tem um comportamento extremamente calmo e nunca deixa as suas emoções se sobreporem ao raciocínio lógico. O L de Keith chega a ser bastante "barraqueiro", gritando, se jogando no chão, correndo e tomando atitudes precipitadas por causa do seu lado emotivo.
Aliás, para quem já acompanhou o anime/mangá, em determinados momentos parecia baixar o espírito do Mello no corpo do L.
Um final cheio de incertezas
O final do filme deixa um gosto de insatisfação e frustração, principalmente por causa do plot twist que a determinada altura estava mais do que previsto.
Death Note (o original) se resume no conflito de valores e nos combates intelectuais travados entre Light e L. Ao mudar vários dos elementos que descrevemos até aqui, o filme passa a ser um drama adolescente clichê de Hollywood.
A ideia do diretor era atrair pessoas que não conhecem a série japonesa e, talvez, neste ponto tenha certo êxito. O filme não é uma total desgraça, vamos deixar isso bem frisado. Mas, para quem já acompanhou a história original e assistiu ao filme... Decepção é a palavra certa.
Aconselhamos a ver o filme com a mente aberta e, como já foi dito antes, não enxergar como uma adaptação, mas sim como uma releitura ocidentalizada.
Antes que você queira escrever o nome de Adam Wingard no seu Death Note, temos que levar em consideração que as alterações feitas pelo diretor visavam aproximar os personagens dos ocidentais contemporâneos. Neste ponto é inegável o sucesso do diretor, mas se isso fez do filme uma obra digna da franquia é outra história... Pronto, agora já pode escrever o nome dele!
Vamos torcer para que não surja um Death Note 2, pelo amor de Ryuk!